24 de mar. de 2009

O tamanco e o apito

Eu tinha meus oito anos de idade e já era bastante vaidosa. Gostava de usar os batons da minha mãe e quando ela me flagrava usando alguma maquiagem sua, me fazia retirar na hora. Eu passava lápis preto nos olhos e ela reclamava, mas eu achava que não tinha problema e via isso como implicância dela. Quando ela se retirava, eu passava escondido mesmo. Chegava na casa de alguma amiga e mostrava como estava linda com aqueles olhos borrados de lápis e os lábios melados com um batom vermelho. Elas achavam o máximo e faziam igual com a maquiagem das suas mães. E ouviam as mesmas reclamações que eu. O que demais tinha em passar maquiagem aos oito anos de idade? Nada! Para nós, não tinha nada, mas a maldade às vezes está nos olhos de quem vê. Todos iam olhar e dizer:
-Como essas crianças de hoje estão “pra frente!”
Tudo bem que nessa idade era cedo para usar essas coisas, mas não víamos maldade alguma nisso. Meu pai nunca gostou de nos ver usando batons ou coisas do tipo. Até mesmo durante a adolescência ele reclamava que o batom estava muito escuro, os olhos muito carregados de maquiagem. Mas com três filhas vaidosas dentro de casa, acabou se acostumando um pouco...
Com essa vaidade desde criança, eu gostava das novidades da moda. Passei em frente à uma lojinha e vi na vitrine um tamanco preto, com um saltinho. Tampava os dedos dos pés e só mostrava os calcanhares. Estava decidida então a comprá-lo. Cheguei em casa pedindo:
-Pai, tem uma loja ali, perto do salão Paroquial vendendo um tamanco de saltinho, lindo. Você podia comprar pra mim, pai...
-Que tamanco? Pra quê sapato alto? Você é muito pequena pra ficar usando sapato de salto.
-ah, painho, é tão bonitinho... Compra pai, por favor...
-tá bom, vamos lá ver...
E lá fomos. Compramos os tamanquinhos. Cheguei em casa, calcei e fui correndo mostrar Tatiane. Ela gostou e pediu pra calçar um pouquinho. Deixei, mas só um pouquinho mesmo.
Mostrei Neia e também deixei ela usar. Todos os dias elas pediam para usá-los. As vezes eu deixava, as vezes não... E quando eu queria conseguir algo delas, era só dizer que emprestaria os meus tamancos se elas fizessem o que eu queria.
Como eu usava os tamanquinhos o dia inteiro, meu pai não conseguia dormir a tarde com o barulho quando eu caminhava. Era toc-toc-toc... E ele ameaçava de me tomar se eu não os tirasse dentro de casa.
Mas foi também com eles que quase morri engasgada...
Eleuza, uma moça que ajudava minha mãe nas tarefas domésticas e cuidava de mim e de meus irmãos, cortou alguns canudos e fez apitos para nós. Quando a gente conversava com o canudo dentro da boca, saía um barulhinho engraçado. E um dia, quando eu estava brincando em casa com meu apito, meu irmão jogou meu tamanco em minha direção, na minha boca. Engoli meu apito, o canudo!
Corri desesperada e gritei minha mãe com aquela voz de Pato Donald:
-Maiiiiinha, engoli o canudo!
-ah, menina, vai brincar no quintal! Estou ocupada passando roupa. Não me atrapalha!
-mas mãe, Leonardo jogou o tamanco na minha boca e eu engoli o canudo!
Ela não deu importância. Comecei a chorar e ela viu que era sério. Jogou o ferro em cima da mesa e começou a gritar:
-Eleuza, vem aqui! Flávia engoliu o canudo! Minha filha vai morrer engasgada!
Minha mãe ficou muito nervosa e começou a chorar também. Com os gritos dela, a vizinhança começou a se aglomerar na porta de casa e quando se viu tinha uma multidão dentro de casa.
Eleuza deu um murro em minhas costas e o apito saiu junto com uma bola de sangue.
Foi aí que minha mãe se acalmou um pouco, mas logo foi atrás do meu irmão, que estava escondido debaixo de alguma cama. Ela deu tanta chinelada no coitado que ele conta que até hoje não se esquece da surra.
Mais tarde, quando tudo passou e a situação se acalmou, eu e meu irmão nos sentamos na porta da rua. E é claro, eu estava usando novamente os meus tamanquinhos...












18 de mar. de 2009

Quando era Natal...

Umas das recordações bem vagas que tenho é a do natal. Eu e meus irmãos escrevíamos todos os anos cartinhas para o papai Noel e não esquecíamos de colocar um sapatinho na janela. A ansiedade era muito grande, e a gente sonhava em pegar o papai Noel no flagra, bem na hora que ele estivesse colocando os presentes perto das nossas camas. Ao mesmo tempo, tínhamos medo do bom velhinho, com aquela barba branca. Lembro-me que quando tinha meus 6 ou 7 anos de idade, pedi uma bicicleta Monark branca e com cestinha. Era a sensação do momento. Minha irmã Marina pediu uma também igual à minha, porém na cor rosa. Na véspera do Natal todos iam dormir cedo pra chegar logo o outro dia e cada um pegar seu presente. No dia seguinte, às 7 horas minha mãe chegava correndo no quarto chamando. Como não dava pra colocar tudo no quarto, eu corria para a sala e lá estavam! Minha mãe falava que tinha ouvido papai Noel tirando uma telha pra entrar em casa.
Estávamos tão felizes que nem nos importávamos em tomar café. Todos corriam pra rua com suas bicicletas. E meus pais ficavam lá na porta de casa olhando, contentes com a nossa felicidade. Eu chamava minhas amigas e oferecia uma voltinha a elas. Elas também me mostravam seus presentes. E ficávamos lá, cada uma elogiando o presente da outra.
No dia que descobri que papai Noel não existia fiquei tão desiludida... Porque foi nele que eu acreditei e escrevi tantas cartinhas e descobri que ele nem existia para ler. Antes de descobrir quase peguei meus pais colocando os presentes lá na sala. Acordei e ouvi um barulho.
Falei:
-mãe, vai dormir, senão papai Noel te vê acordada e não traz os presentes...
Mas, enfim, o dia da descoberta chegou.
No natal passado meu pai perguntou a minha sobrinha de 3 aninhos o que ela ia pedir ao papai Noel de presente. Ela riu e respondeu:
-ah painho (ela chama meu pai de painho, não de vovô), eu sei que papai Noel não existe... Eu sei que é o senhor quem vai me dar a minha cabaninha de bolinhas!
Todos riram pasmados.
As crianças de hoje em dia não tem nem o prazer de viver certas fantasias que a infância traz. O que será que terão para contar quando estiverem adultos?

17 de mar. de 2009

Infância feliz

Ser criança antes era muito mais fácil. Hoje em dia tudo é perigoso. Ninguém tem mais coragem de deixar seus filhos brincarem na rua. E assim, crescem presos dentro de casa, em frente a um computador. Sabem de tudo o que está relacionado à tecnologia, informática, mas não conhecem o prazer de brincar no fundo de um quintal de terra, subir em árvores, comer uma fruta tirada na hora da árvore, tomar banho de chuva, brincar de corda, esconde-esconde, pega-pega e outras mil brincadeiras que tive o privilégio de experimentar. A infância de antes era mais feliz.
Minha infância foi muito bem vivida. Quando criança, fiz tudo o que tinha direito e era feliz. Tenho amizades que se concretizaram com o passar do tempo. Mesmo distante das minhas amigas de infância, sei que elas estão por aí, cada uma vivendo sua vida. Algumas estão casadas, outras ainda não. Sei que elas têm muita história pra contar, assim como eu.
Tatiane e Neia fizeram parte do meu círculo de amizades na minha primeira infância. Foram as minhas primeiras e melhores amigas quando criança. Foi ao lado delas que subi em árvores, “roubei” goiabas e mangas, as frutas mais gostosas que já comi. Com elas, construí cabaninhas no fundo do quintal de terra e fiz comidinha em um fogãozinho com dois blocos. Com elas, saltei muros das casas dos vizinhos pelo simples prazer da aventura. Juntas, formávamos um programa para o público infantil, onde nosso palco era uma carroceria velha e abandonada em frente à uma oficina de carros na rua da minha casa. Nós três cantávamos e o público era imaginário...
A chuva e o cheiro da terra molhada era um motivo de alegria.
No quintal da casa de Feliz –Felicidade era o nome da vizinha- nós fazíamos bolinhos de terra que até dava vontade de comer mesmo, de tão bonitinhos que ficavam.
Juntas, aprontamos muitas coisas e fomos crianças felizes.
Com meus irmãos também já aconteceu de tudo. Meu irmão, em especial, deu muito trabalho pra minha mãe. O nome dele é Leonardo e, só pra se ter uma idéia, o apelido dele lá na rua era “Leo capetinha”.
Marina era a mais distraída e sem juízo. Aparecia com suas treitas e sempre sobrava para todos.
A mais nova, Fernanda, era mais quietinha. Quase não me lembro de algo que ela tenha feito pra ter deixado alguma recordação mais marcante. Me lembro sim, do dia em que eu peguei ela em meus braços, quando ela tinha apenas uns 2 aninhos e a deixei cair e bater a nuca na quina do degrau do banheiro. Apanhei feio da minha mãe nesse dia...
Vivi tão intensamente esses anos que até hoje ainda sonho morando naquela rua, com aquelas mesmas pessoas. Mas, algumas delas já se foram. Dona Telina era a senhora da rua. Respeitada pelos adultos,colocava medo nas crianças, mas no fundo gostava de todos nós. Há uns 4 anos ela faleceu. Mas tenho ainda viva a lembrança dela. Lembro detalhadamente como ela era: baixinha e gordinha. Se vestia sempre com um vestido abaixo dos joelhos, os cabelos amarrados com um coque. Andava mancando de uma perna e sempre usava sandálias havaianas. Me lembro perfeitamente disso porque sempre via só as suas pernas por debaixo da mesa quando eu e Tatiane entrávamos escondidas na casa dela. No rosto, uns óculos grandes, quase fundo de garrafa. A voz grave e firme. Como a casa dela era colada com a minha, sempre que aprontávamos alguma coisa errada e apanhávamos, nosso socorro era ela. A gente gritava do quintal:
-Dona Telina, socorro! Manda mainha parar de bater na gente!
-Dona Telina, vem aqui tirar a gente do castigo. Meus joelhos estão doendo porque já tem meia hora que estou ajoelhada no chão do quintal.
E ela gritava do outro lado do muro:
-O que foi que vocês fizeram pra ficar de castigo?
E logo chegava ela lá em casa e pedia mainha pra tirar. Às vezes ela ouvia o conselho daquela sábia senhora, às vezes não, quando estava com muita raiva.
Perto de casa tinha um bequinho de terra, onde as crianças se encontravam para brincar e fazer armadilhas. Um buraco era cavado e dentro dele colocávamos tudo que encontrasse pela frente. Lixo, pedras, e nas vezes em que meu irmão comandava ele colocava até caco de vidro. Por cima do buraco era colocada uma folha de papel e jogavam terra em cima da folha. Todos ficavam escondidos esperando a primeira vítima.
Foi também nesse bequinho que meu pai nos levava para enterrar e fazer uma missa para algum animal de estimação nosso que morria. Geralmente era algum pássaro que ele criava em casa. Meu irmão fazia uma cruz com palitos de dente e colocava em cima do local onde o pássaro foi enterrado.
Viver desde os meus dois anos de idade até minha adolescência com essas pessoas se tornou algo inesquecível. Se pudesse voltar no tempo, faria tudo novamente. Roubaria mais goiabas, saltaria mais muros, correria mais riscos, sem imaginar o perigo que corria. Seria uma criança ainda mais feliz do que fui. Eu me sentia feliz, mas não sabia que era tanto...